Atualmente, os dados pessoais são coletados de forma automática e concomitante à sua produção, por meio não apenas de dispositivos eletrônicos, mas também de objetos ligados à internet (internet das coisas).
Os dados coletados por órgãos públicos também estão sujeitos ao risco de captação e tratamento por terceiros, especialmente com a prestação dos serviços online.
Entre os reflexos da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a sua aplicação sobre o Judiciário deve compreender a análise das mudanças causadas sobre a forma de regulação infraconstitucional do princípio da publicidade processual, especialmente sobre a consulta processual, a publicação de decisões na movimentação processual e em Diário Eletrônico, e a pesquisa de jurisprudência nas páginas dos tribunais na internet.
Recorda-se que o princípio da publicidade processual tem fundamento no art. 93, IX, da Constituição, que também realiza a ponderação de princípios no art. 5º, LX, ao permitir a limitação da publicidade dos atos processuais com fundamento na defesa da intimidade e na proteção do interesse social.
Ao atribuir uma prevalência à publicidade e prever o sigilo como exceção, a Constituição brasileira prioriza a informação, a transparência e o interesse público no acesso aos atos praticados por agentes públicos.
A publicidade é regulada de forma semelhante no art. 189 do Código de Processo Civil, no art. 792 do Código de Processo Penal e no art. 770 da Consolidação das Leis do Trabalho.
Ainda, a publicidade pode ser interna (endoprocessual), ao assegurar o acesso aos atos processuais pelas partes e seus representantes, e externa (extraprocessual), assegurada para qualquer pessoa fora do processo, interessada ou não.
A Constituição restringe apenas a publicidade externa ou extraprocessual, ou seja, admite o sigilo extraprocessual, por uma razão: para preservar o direito à intimidade do interessado, quando isto não prejudicar o interesse público à informação. Em outras palavras, é permitido o sigilo extraprocessual (externo), mas não o endoprocessual (interno): as partes têm o direito fundamental de acesso e conhecimento a todos os atos do processo, sem exceção.
Assim, o segredo de justiça impede o acesso aos atos por pessoas que não participam do processo.
Na Justiça do Trabalho, não é possível realizar a pesquisa de processos pelo nome da parte autora (trabalhador), mas apenas por alguns dados mais específicos (número do processo, nome do advogado e número do registro na OAB).
Contudo, isso não impede que atualmente, antes de contratar uma pessoa, o empregador realize uma busca por seu nome na internet, que, se existir qualquer decisão proferida pelo TST ou por um TRT em ação trabalhista movida por ela, será encontrada em sites jurídicos específicos.
A Resolução nº 121/2010 do CNJ regulamenta a divulgação de dados processuais eletrônicos ao público, deve ser revisada para se adequar à LGPD e garantir a proteção de dados pessoais.
Nesse ponto, não se pode utilizar o princípio da publicidade como um direito de bisbilhotar a vida alheia.
A regulação infraconstitucional do princípio da publicidade pouco mudou desde o Código de Processo Civil de 1939. Em regra, todos os atos processuais são públicos, mas podem ser limitados pelo “decoro ou interesse social” (art. 5º do CPC/39), pelo interesse público ou social, ou por matérias associadas à intimidade das partes (art. 155 do CPC/73 e art. 189 do CPC/2015).
Em um mundo hiperconectado e digital, não se pode manter a mesma interpretação à publicidade processual delimitada por normas legais elaboradas antes mesmo da produção de máquinas de escrever no Brasil (o que teve início apenas em 1941, ano posterior à entrada em vigor do CPC/39).
Logo, a busca simples de processos apenas com a consulta pelo nome de uma das partes, ou a sua localização na pesquisa de jurisprudência do tribunal (com a inclusão do nome na pesquisa de palavras-chave), com a exposição de todos os processos existentes (em tramitação ou baixados) em nome da pessoa pesquisada, também deve passar por mudanças em todo o Judiciário.
Essas questões devem ser analisadas no Supremo Tribunal Federal, no julgamento do mérito do Tema nº 1.141 da Repercussão Geral, com o seguinte tema controvertido:
"Responsabilidade civil por disponibilização na internet de informações processuais publicadas nos órgãos oficiais do Poder Judiciário, sem restrição de segredo de justiça ou obrigação jurídica de remoção".
A matéria foi afetada na sessão de julgamento virtual do Plenário encerrada no dia 07 de maio de 2021 e compreende a divulgação de dados de um processo trabalhista em páginas de pesquisa na internet (o que prejudicou a reinserção da parte autora no mercado de trabalho).
A controvérsia envolve a tese fixada no IRDR nº 16 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
"É lícita a divulgação por provedor de aplicações de internet de conteúdos de processos judiciais, em andamento ou findos, que não tramitem em segredo de justiça, e nem exista obrigação jurídica de removê-los da rede mundial de computadores, bem como a atividade realizada por provedor de buscas que remeta aquele".
O caso também compreende uma questão processual sobre o interesse recursal: o recurso que deu origem ao Tema nº 1.141 da Suprema Corte foi interposto por um dos réus no processo na primeira instância que, apesar de ter sido vencedor na tese fixada no IRDR nº 16 do TJRS, pretende a ampliação de seus efeitos territoriais, do Rio Grande do Sul para todo o território nacional (a fim de modificar a limitação realizada pelo tribunal de origem).
Assim, ao apreciar a responsabilidade civil de terceiros pela divulgação de dados pessoais coletados de atos públicos praticados em processos judiciais, o Supremo Tribunal Federal terá a oportunidade de atualizar a interpretação do princípio da publicidade processual diante do respeito à privacidade e da proteção dos dados pessoais.
Os dados pessoais são tratados nos processos judiciais com fundamento na base legal do exercício regular de direitos (arts. 7º, VI, e 11, II, 'd', da LGPD) e a publicização dos dados não afasta a observância dos princípios de tratamento do art. 6º e o respeito aos direitos do titular (art. 7º, § 4º, da LGPD).
Por isso, a coleta de dados de atos processuais públicos deve ter limites.
No mundo digital do Século XXI, além da Justiça, é preciso definir quem também não pode ver ou levar em conta os dados pessoais das partes na tomada de decisões.
Artigo também publicado no Jusbrasil (clique aqui) e no Jus Navigandi (clique aqui).
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