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José Afonso da Silva e a Força Normativa da Constituição: A Atualidade de Sua Teoria da Aplicabilidade das Normas Constitucionais

  • Foto do escritor: Oscar Valente Cardoso
    Oscar Valente Cardoso
  • há 2 dias
  • 5 min de leitura

Faleceu hoje, aos 100 anos, o professor José Afonso da Silva, um dos maiores constitucionalistas da história do país e autor de uma obra que transformou gerações de professores e estudantes.


A sua produção intelectual ultrapassa fronteiras, dialoga com a tradição constitucional ocidental e permanece absolutamente central para compreender o sentido e o alcance da Constituição brasileira.


Entre suas inúmeras contribuições, uma das mais marcantes é a teoria da aplicabilidade das normas constitucionais, desenvolvida na obra clássica Aplicabilidade das Normas Constitucionais, que inaugura e sistematiza um dos debates mais relevantes da dogmática constitucional brasileira.


Não é possível falar de Constituição no Brasil sem mencionar José Afonso da Silva. A sua visão metodológica, sua capacidade de leitura sistemática do texto constitucional e sua insistência na força normativa da Constituição moldaram a forma como entendemos o constitucionalismo contemporâneo.


Ao mesmo tempo culto e pedagógico, o professor José Afonso oferecia clareza conceitual sem perder profundidade teórica, e talvez por isso seu pensamento tenha se tornado referência obrigatória em qualquer discussão séria sobre direitos fundamentais, separação de poderes e estrutura constitucional, entre outros temas constitucionais relevantes.


Entre os inúmeros méritos de sua obra, destaca-se a sistematização das categorias de aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais, que permanece, até hoje, como fundamento da interpretação jurídica brasileira.


Com sensibilidade histórica e rigor conceitual, José Afonso da Silva recusou tanto o formalismo estreito, incapaz de enxergar a dimensão política e ética da Constituição, quanto uma leitura excessivamente aberta, que dissolveria a sua normatividade em pura abstração. Para ele, a Constituição é, antes de tudo, uma norma jurídica, sujeita a categorias próprias, mas dotada de força que orienta e vincula toda a ordem jurídica.



A Contribuição de José Afonso da Silva: Aplicabilidade, Eficácia e Constituição como Norma


A discussão sobre a aplicabilidade das normas constitucionais surge como resposta direta a um problema histórico: a tradição brasileira de tratar a Constituição como "programa político", "carta de intenções" ou "folha de papel", conforme a célebre metáfora de Ferdinand Lassalle.


O professor José Afonso da SIlva reagiu a essa tradição, ao sustentar que a Constituição não é mero enunciado político, mas norma jurídica, dotada de eficácia, ainda que em diferentes graus.


A principal distinção realizada por ele é aquela entre:


  • Aplicabilidade, que se refere à aptidão da norma para incidir em casos concretos;

  • Eficácia, que diz respeito à capacidade de produzir efeitos jurídicos;

  • Vigência, que define o tempo em que a norma tem validade formal;

  • Validade, que se refere à conformidade da norma com os critérios materiais e formais de produção.


Embora reconhecesse a proximidade conceitual entre aplicabilidade e eficácia, José Afonso da Silva sustentava que não são termos equivalentes. É possível que uma norma possua eficácia (isto é, que seja capaz de produzir efeitos) mesmo que, em determinadas situações, não seja aplicável a um caso concreto específico, como ocorre com normas eficazes que encontram barreiras fáticas ou jurídicas para a sua incidência.


Em sentido inverso, uma norma inaplicável não necessariamente perde a sua eficácia jurídica mínima, pois ainda exerce função orientadora na interpretação do sistema e na criação de políticas públicas.


Esse refinamento conceitual permitiu que a dogmática constitucional brasileira superasse o entendimento reducionista de que normas constitucionais de eficácia limitada seriam meramente simbólicas. Para José Afonso da Silva, a eficácia nunca é inexistente, pois mesmo as normas de eficácia limitada possuem densidade normativa, ainda que dependam de complementação legislativa para incidirem de modo pleno.



As Categorias de Eficácia das Normas Constitucionais


A classificação criada por José Afonso da Silva tornou-se um marco doutrinário, ao distinguir três tipos fundamentais de normas constitucionais:


  1. Normas de eficácia plena: são normas constitucionais completas em conteúdo, que já nascem prontas para produzir efeitos jurídicos imediatos, sem depender de qualquer complementação legislativa. O seu texto já oferece um conteúdo normativo completo: define direitos, estabelece condições de exercício e fixa limites de maneira suficientemente clara. Elas contêm todos os elementos necessários para sua aplicação e, por isso, podem ser exigidas diretamente perante o Estado ou os particulares;

  2. Normas de eficácia contida: são dotadas de aplicabilidade imediata, mas que podem ter o seu alcance restringido por lei posterior. Em outras palavras, são normas constitucionais que têm aplicabilidade imediata, produzem efeitos imediatos, mas podem ser restringidas por lei posterior, por razões de interesse público, ordem pública, segurança, ou outras finalidades constitucionais. Elas nascem com eficácia plena, mas admitem contenção posterior;

  3. Normas de eficácia limitada: são normas constitucionais que possuem força normativa, orientam a atuação do Estado, mas dependem de lei posterior para produzir efeitos concretos, logo, não são aplicáveis imediatamente ao caso concreto. São normas que vinculam, mas não regulam o suficiente sem atuação legislativa. Assim, são as normas que dependem de atuação legislativa para produzir efeitos completos, dividindo-se em normas de princípio institutivo (normas que instituem órgãos, políticas, sistemas ou estruturas, mas não as regulamentam integralmente) e de princípio programático (normas que estabelecem objetivos, diretrizes e programas de atuação estatal, impondo ao legislador e aos governantes metas, finalidades e políticas públicas futuras).


Essa tipologia moldou a compreensão dos juristas sobre como a Constituição brasileira deve ser aplicada e permanece central para a interpretação do texto de 1988.


Ao demonstrar que a Constituição contém diferentes níveis de densidade normativa, o professor José Afonso ofereceu ferramentas para impedir tanto o esvaziamento dos direitos fundamentais quanto a leitura voluntarista, que desconsideraria a necessidade de estrutura institucional adequada.



A Atualidade da Obra: A Força Normativa da Constituição de 1988


Após 37 anos de vigência da Constituição de 1988, é impossível negar a atualidade da doutrina de José Afonso da Silva.


A Constituição Cidadã é pródiga em normas de eficácia plena e contida, especialmente na regulação dos direitos fundamentais, cuja aplicabilidade imediata é reforçada pelo art. 5º, § 1º.


Entretanto, também contém normas que exigem complementação legislativa para a sua concretização plena, como muitas das políticas públicas previstas na ordem social.


O grande mérito da obra de José Afonso da Silva é permitir que o intérprete reconheça a Constituição como norma que pode incidir diretamente na prática, sem tratar suas normas programáticas como meras promessas.


A eficácia limitada, em sua concepção, não significa ineficácia; mas sim a necessidade de atuação legislativa responsável. É exatamente essa leitura que impede, por exemplo, retrocessos na concretização de direitos sociais (como saúde, educação, moradia e previdência), com a alegação equivocada de que seriam "meras diretrizes".


Além disso, a distinção entre aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais permanece relevante. Em tempos de judicialização intensa e crescente demanda pela efetivação de políticas públicas, compreender que nem toda norma é imediatamente aplicável, e que mesmo normas programáticas possuem força jurídica, é essencial para evitar tanto o ativismo desmedido quanto o imobilismo institucional.



O Legado que Permanece


Ao falecer aos 100 anos de idade, José Afonso da Silva deixa um patrimônio intelectual de rara profundidade. Seu pensamento não pertence apenas à academia, mas a todo o constitucionalismo brasileiro. Ele ensinou que a Constituição precisa ser levada a sério; que seus comandos têm força normativa; que os direitos fundamentais não são promessas, mas normas concretas.


A sua obra continuará a formar gerações de juristas, a orientar decisões judiciais, a ser referência obrigatória para qualquer debate sério sobre o papel da Constituição na vida diária. E continuará, sobretudo, a lembrar-nos de que o Direito não pode se afastar da Justiça, sob pena de perder a sua própria razão de existir.


Em um país que tantas vezes falhou em cumprir suas promessas constitucionais, José Afonso da Silva nos ensinou que a Constituição não é apenas um texto, mas é um projeto de futuro. E sua doutrina seguirá iluminando esse caminho.



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