O respeito à privacidade (art. 2º, I, da LGPD) assegura que as operações de tratamento de dados pessoais devam ser efetivadas por meios que permitam a preservação do sigilo desses, do eventual consentimento dado pelo titular (e as permissões abrangidas por ele) e de seus interesses. A coleta de dados pessoais e a realização de outras atividades de tratamento não conferem ao seu agente o direito de torná-los públicos.
Os incisos X e XII do art. 5º da Constituição compõem uma cláusula geral de privacidade, que protege a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem e a inviolabilidade de dados das pessoas naturais, além de assegurar o direito à indenização pelo danos materiais e a compensação pelos danos morais decorrentes da violação desses direitos.
Em outras palavras, a privacidade é o gênero, que compreende os aspectos relacionados com a esfera pessoal de cada indivíduo (intimidade, vida privada, honra, imagem e dados pessoais).
O direito à privacidade surgiu com a publicação do artigo “The right to privacy”, escrito por Samuel Warren e Louis Brandeis, publicado em 1890 na Harvard Law Review, que defende a existência de um direito de estar e de ficar sozinho (right to be let alone). Uma das razões que levou os autores a escrever o texto foi o seu descontentamento com invasões da privacidade na vida doméstica em eventos sociais causadas pelo uso de um dispositivo novo, que era a câmera fotográfica, com a consequente exposição das pessoas nos jornais (“For years there has been a feeling that the law must afford some remedy for the unauthorized circulation of portraits of private persons ;11 and the evil of invasion of privacy by the newspapers” - para ler o artigo, clique aqui).
Tendo em vista que os dados pessoais dizem respeito à vida privada da pessoa natural e permitem a obtenção de informações sobre a sua personalidade, o acesso e a realização de outras atividades sobre eles são condicionadas ao respeito à privacidade do titular.
Contudo, o direito à privacidade é fluído (o que foi destacado desde a sua elaboração em 1890 por Samuel Warren e Louis Brandeis), que recebe uma alta carga de influência das mudanças sociais, culturais, econômicas, políticas e legislativas, entre outras. Com a difusão e a popularização da internet, houve uma redução dos limites à privacidade e, até mesmo, o desenvolvimento de uma cultura de exposição, de uma busca por reconhecimento, fama e ganhos financeiros. Isso leva à necessidade de atualização do conceito e dos limites do direito à privacidade, inclusive na proteção dos dados pessoais.
Em 2020, a preocupação com a privacidade não é a mesma que existia em 1890, que compreendia principalmente a publicação não autorizada de fotos nas colunas sociais dos jornais.
Por exemplo, o Supremo Tribunal Federal analisou os limites das atividades de tratamento de dados pessoais diante do respeito à privacidade, ao julgar o pedido de tutela provisória em cinco ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 6387, 6388, 6389, 6390 e 6393), propostas contra a Medida Provisória nº 954/2020. Essa MP, que teve a sua vigência encerrada em 14 de agosto de 2020 (Ato Declaratório do Presidente da Mesa do Congresso Nacional nº 112/2020), obrigava as empresas de telefonia fixa e móvel a compartilhar com o IBGE a relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas naturais e jurídicas (art. 2º), para permitir a manutenção da produção estatística oficial durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da COVID-19.
No julgamento ocorrido nos dias 6 e 7 de maio de 2020, o Plenário do STF suspendeu a eficácia da MP 954/2020, com os fundamentos principais de ausência de definição específica da finalidade do tratamento (princípio previsto no art. 6º, I, da LGPD) e, consequentemente, de violação indevida da privacidade.
Também recentemente, em 2020 a Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD) multou em 1.500 euros um proprietário de veículo que usava uma dashcam (câmera filmadora para uso em veículos) que filmava em 360 graus, ou seja, estava captando imagens em espaço público. A AEPD concluiu que essas câmeras podem ser utilizadas se voltadas preferencialmente para o espaço privado (ou seja, dentro do próprio veículo) e que a filmagem indiscriminada de espaços públicos extrapola o princípio da minimização dos dados pessoais, segundo o qual a captação e outras atividades de tratamento devem ser realizadas de acordo com a necessidade (art. 5º.1.c do GDPR da União Europeia) (veja mais sobre o caso aqui).
No Brasil, não há regras em leis federais sobre o uso de câmeras nos veículos, tampouco acerca da utilização particular de câmeras de vigilância ou segurança e do uso de CFTV (Circuito Fechado de Televisão) em ambientes públicos, privados ou de uso comum. Existem leis locais sobre o assunto, como a Lei nº 13.541/2003, do Município de São Paulo (que condiciona o uso de câmeras à colocação de placa informativa sobre a filmagem do ambiente), e a Lei nº 3.424/2004, do Distrito Federal (que permite a instalação de equipamentos eletrônicos para a segurança de estabelecimentos apenas em locais públicos, de livre acesso e que não interfiram na privacidade e comodidade dos empregados e dos clientes).
Por exemplo, os motoristas profissionais (táxis e aplicativos) podem utilizar câmeras nos carros para a sua segurança? Há necessidade de informar o passageiro sobre a existência de câmera e pedir o seu consentimento para a gravação?
Em órgãos públicos há necessidade de informar que há câmeras de vigilância? E em locais de uso comum de prédios e condomínios comerciais e residenciais, em lojas e shoppings centers? Ainda, os sistemas de “cercamentos eletrônicos” (sistema de videomonitoramento com a leitura de placas de veículos) podem ser livremente instalados e utilizados nos municípios?
Não há regras específicas na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) sobre esse assunto, mas duas situações diferentes devem ser destacadas:
(a) regra geral: a imagem é um dado pessoal, logo, em princípio a LGPD se aplica à sua captação por câmeras, em ambientes públicos ou privados;
(b) exceções: a LGPD não se aplica ao tratamento de dados pessoais (logo, à captação de imagens) realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos (art. 4º, I), ou realizado para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado, ou atividades de investigação e repressão de infrações penais (art. 4º, III); portanto, em todas essas situações (que abrangem, por exemplo, o cercamento eletrônico no município e o uso de uma dashcam em automóvel particular) a LGPD não incide.
Ainda que não haja a aplicação da LGPD, a imagem é protegida como um direito da personalidade, ou seja, não se pode esquecer que devem ser observadas as regras do Código Civil.
Além disso, a incidência da LGPD ao uso de câmeras de vigilância não significa que deve sempre existir o consentimento das pessoas filmadas. O consentimento é uma entre dez bases legais (art. 7º da LGPD – além das bases legais previstas nos arts. 11 para os dados pessoais sensíveis) que podem ser utilizadas para esse fim, especialmente o legítimo interesse do controlador, a proteção da incolumidade física e da vida do titular ou de terceiros.
Portanto, não existe uma resposta única para todas as situações de uso das câmeras, que deverão ser resolvidas caso a caso, especialmente de acordo com a atividade de tratamento, as suas finalidade e necessidade, além da pessoa que realizar a captação dos dados.
Artigo também publicado no Jusbrasil (clique aqui) e no Jus Navigandi (clique aqui).
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